quinta-feira, 7 de março de 2013

01. Tudo em tudo

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Paulo Timm

De uma sanga nasce um rio
O rio caminha rumo ao mar
O mar chega ao céu
Pra na chuva regressar
Tudo, tudo em tudo circular.

Um animal extinto se move 
No que move a nave que faz o homem voar
E aquele que viu a terra azul 
Pintou de cinza o seu lugar
Tudo, tudo em tudo circular.

Um pássaro repete palavras
Que poderiam ao mundo salvar
Se não houvessem matado os índios
Que o ensinaram a falar
Tudo, tudo em tudo circular.

O que agora envenena água
Amanhã o próprio veneno há de tragar
O peixe que falta na rede
Ontem morreu sem respirar
Tudo, tudo em tudo circular.

A semente que viajou no vento
Foi árvore em distante lugar
Na madeira dormia a guitarra
Que em minhas mãos veio pousar
Tudo, tudo em tudo circular.

Do meu passo nasceu o pó
Que fez teu pranto brotar
Ainda que não me vejas na terra
Eu estou em teu olhar
Tudo, tudo em tudo circular.





Arranjo coletivo
Paulo Timm: voz e violão aço 
Gilberto Isquierdo: voz
Gil Soares: flauta
Hélio Mandeco: vocal, violão aço e baixo
Fernando Leitzke: piano
Leonardo Oxley: vocal.


02. Caseira

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Gilberto Isquierdo

O sol cai na tarde de verão
E a sombra no meu pátio aparece
Agora o mundo inteiro parece
Feito de frescor   mate e paz.

Agora meu pátio parece
O que o mundo deveria parecer
Todos deveriam merecer 
Saber o que buscam do mundo.

No rádio canta Noel Guarani
E eu me afundo em pensamentos
A vida, nesse momento,
É simples feito essa canção 
Que se ouve no pátio.

Tenho amigos de lei
Destes que a vida oferece
E um de sangue, que mesmo de longe,
Pela cara se reconhece.

Tenho um cusco sem serventia
Que é um amigo dos melhores
Uma prenda com quem comparto
Catre, sonhos e suores.

Viro o mate, falo de ontem
Com os mortos que revivo
E quando falo aos vivos
É do amanhã, que virá 
Da nossa luta e esperança.




Gilberto Isquierdo: voz
Negrinho Martins: arranjo, 
violão base e baixo
Luciano Fagundes: violões solo
Nando Barcellos: percussão.



3. Um canto para o amor de Florentino Ariza

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Paulo Timm

Naquele dia não lhe reconheceram
Embora tão clara a manhã
Poderia nos olhos de um velho
Caber tanto amanhã?

Naquele dia encilhou seu cavalo
E num repente Florentino
Partiu rumo ao rumo de sempre
Disposto a mudar o destino.

O brilho em seu olhar de homem
Ela acendeu nos seus olhos de menino
Era uma questão de muito tempo
O amor de Florentino.

O destino é um rio que bufa
Assusta e nega passagem
Ele era daqueles, naquele dia
Pra quem sobra cavalo e coragem.

Cinquenta anos, nove meses, quatro dias
Pra aquele dia amanhecer
Embora tão clara manhã
Quem o viu não o pode reconhecer.

Cinquenta anos, nove meses, quatro dias
Pra nascer aquela manhã
Como nos olhos de um velho
Poderia caber tanto amanhã?




Paulo Timm: voz 
Silvério Barcellos: arranjo e violões
Fernando Leitzke: piano
Clarissa Ferreira: violino.


4. Milonga desesperada

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Gilberto Isquierdo

Às vezes me desespero
E escrevo coisas que sinto
O verso me sai sincero
E me parece que minto
Meu verso fala de pão
E não mata a fome dos famintos.

Às vezes me desespero
E espero que me compreendas
Nos olhos não tenho venda
O mundo por eles desfila
Faço versos pra mudar o mundo
Enquanto o mundo nos mutila.

Às vezes me desespero
Por saber que meu verso
É mais um no universo
Feito com boa intenção
E acabará no inferno 
Com rima e sem solução.

Às vezes me desespero
Mas meu coração persevera
Me põe nas mãos primavera
E outro verso floresce
Então traço mais uma linha
Pedindo que a justiça comece.

Às vezes me desespero
E desesperado me descrevo
Nos versos inúteis que escrevo
“Pero este es mi ofício
Y lo es para mi sacrifício
Y no por mi vanidad’’. *

Às vezes me desespero
E desesperado me descrevo
Nos versos inúteis que escrevo
Contra a realidade
E deixarei nessa milonga
Ao sul da humanidade.




Gilberto Isquierdo: voz
Paulo Timm: voz
Luciano Fagundes: arranjo e 
guitarra semi-acústica 
Fernando Leitzke: piano
Negrinho Martins: violão base e baixo
Nando Barcellos: percussão.

*Atahualpa Yupanqui


5. Sería solo un hombre

Letra: Maurício Raupp Martins - Martim César
Música: Paulo Timm 

Sería solo un hombre
En medio de muchos más
Si no fuera por llevar
Un canto en sus oídos

Sería solo un canto
Con rasgos de hermosura
Si no fuera la basura
Quien le daba su sentido

Pa'l que no tiene trabajo
No hay mucho que elegir
Hay que luchar por vivir
Entre latas, cartón y esperanza

Porque nada puede el mundo
Cuando canta así un hombre
Si no lo ha vencido el hambre
Ni el dolor más oscuro

Porque nada puede el mundo
Contra quien en la miseria
Trae vivo, en sus arterias
Su canto claro y profundo

No es que no tenga rabia
O que no sienta dolor
Pero aún en el charco la flor
Suele adornar el paisaje

No es nada más que un silbido
Pero dice mucho su canto
¿ Porque para unos hay tanto
Y hay tantos en el olvido?

Un hombre se hace canción
Y así derrota al olvido
Y mucho más que el oído
Nos hace temblar el corazón




Arranjo coletivo
Paulo Timm: voz e violão aço
Fernando Leitzke: piano 
Hélio Mandeco: vocal e baixo
Marcos Fragoso: gaita de boca.



06. A canção do vinho

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Gilberto Isquierdo

Não, não cante comigo
Deixe que eu cante sozinho
Esta canção do vinho
Que é feita de solidão.

Vem, traz teus ouvidos 
E teu cálice traga
Esta canção amarga
Vamos tragar em silêncio.

Não, não vá ainda
Ainda há muito que calar
E calado me acompanhe
Até o último cálice secar.

Sinta a alma 
Demonstrar o que sente
Ao sentir que a gente
Esta perdendo os sentidos.

Não, não repare nos estragos
Nem aos estragos repare
Hoje me sinto maldito
Dos destroços não me separe.

Enfim, ergamos um brinde
Antes que finde o vinho 
E regresse um Dom Quixote
Sem o dom de ver moinhos.

Não, eu não disse nada
São estes silêncios covardes
Me traindo, fazendo alarde
Corrompidos pelo vinho.

Ouviste o canto dos galos
É a manhã que esta por vir
Cantaram três mil vezes
E a ninguém poderei trair.

Me dói a idéia da luz 
De outra e nova manhã
Desde que eu deixei o amor
Pra depois de amanhã.




Gilberto Isquierdo: voz
Silvério Barcellos: arranjo e violões
Leonardo Oxley: violino
Jucá De Leon: percussão 
Rodrigo Maia: baixo.


07. Milonga para os olhos do Che

Letra: Maurício Raupp Martins - Martim César 
Música: Alessandro Gonçalves - Paulo Timm

De medo, de sonho, de bala ou de amor
Qual destas mortes a morte prefere?
Morrer de medo ou do imenso amor
Mágica flor que perfuma e fere.

Estranha flor que ao ser colhida
Só por ti pode ser doada
Mais vale se repartida
Menos, se for guardada.

Sei de mortos que estão vivos 
Plenos de tanto viver
Que ficam mostrando rumos
Pra quem quiser aprender.

Lembrem dos olhos do Che
E entenderão o que eu digo
Há mortos que entram na vida
Pra renascer alguns vivos.

Viver é semear-se na terra
Moeda que deve ser gasta
Pra morrer basta estar vivo
Pra viver isso não basta.

Se é partir sempre se parte
E há sempre alguém morrendo
Mas uns se vão para sempre 
E outros seguem vivendo.




Arranjo coletivo
Paulo Timm: voz
Gilberto Isquierdo: voz
Hélio Mandeco: piano, violão e baixo
Gil Soares: flauta.


08. Tomates traídos

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Gilberto Isquierdo

A vida, às vezes muda de casa e cidade
Vasculha gavetas, separa o que fica o que vai
E joga fora tanta coisa por já não ter 
Os olhos de quem já não sou mais.

Os tomates não falam por isso ficaram calados
Em meio as coisas sem valor ou utilidade
Os tomates não mudam, salvo se forem mudados,
Por isso ficaram quando mudei de cidade.

Os olhos daquele que já não sou mais
Notariam uma planta e sua sede
Não veriam vida em preto e branco
Entenderiam uma língua em vermelho e verde. 

Os tomates nada mais querem ser
E nada sabem além da água, luz e calor
Os tomates traídos jamais saberão
Que, ao final, fui eu seu algoz e traidor.

Os tomates não mudam, salvo se forem mudados
Por isso ficaram quando mudei de cidade
Tomates e sonhos são parecidos, esquecidos
Por não terem valor ou utilidade.

Os olhos daquele que já não sou mais
Até o fim os velaram, por certo,
Eles ficaram entre os trastes que ficaram
Porque eu já não os queria por perto.




Gilberto Isquierdo: voz 
Luciano Fagundes: arranjo, 
guitarra semi-acústica e violões 
Dione Silveira: gaita de boca 
Negrinho Martins: baixo
Nando Barcellos: percussão.


09. Relato sobre a cegueira

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Paulo Timm

Não me digam atrevido 
Se lhes canto sem permiso
Canto e por isso existo 
E existo para isso
Cantar o que tenho visto
Esse é o meu compromisso

Eu venho contar que vi
Cegos de toda a maneira
E vi a pior cegueira
Nos olhos do que viu tanto
Até perder o espanto
Da primeira vez...

Lhes digo, se é nos olhos
Que nasce mesmo a cegueira
Despacito e matreira
Sem dar alce ela avança
Até quando alcança
O coração e as mãos.

E a cegueira se consuma
Quando o homem se acostuma
A ver tanta gente sem pão
A ver a vida indigente
E já não cerra os punhos
E nem aperta os dentes.

E toda aquele que cega
Porque já não enxerga
Seu coração amiúda
Com pretensões de vidente
Dirá pra toda gente:
Nessa terra nada muda.

E seguirá contando
Essa mentira maldita
Que de tantas vezes dita
Uma verdade parirá
E um que ainda enxergue
Pra não mentir nada dirá.

Não se trave a minha língua
Minha vista não se turve
Nem meu verso se curve
Encare a injustiça de frente
Que eu ainda cerre os punhos
E ainda aperte os dentes.




Paulo Timm: voz, arranjo e violões 
Fabrício Moura: bandolim e baixo
Hélio Mandeco: vocal.


10. Segundo os olhos de Miramar

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Gilberto Isquierdo

Louco, andarilho, profeta,
Deve estar feliz no mar.
Quando seus sapatos gastaram
Decidiu partir Miramar.

Na praia ficaram sapatos
E pegadas na direção do mar
Nos sapatos a tristeza da terra
Que já não cabia em seu olhar.

A terra tinha muitas coisas
Que eram de poucos
A terra não era lugar 
Para os seus olhos loucos.

Ele mirava o mar
Que não é de ninguém
O mar sendo de todos
Poderia ser seu também.

O mar não tinha coisas
Em mão alguma caberia
Igualaria todas as mãos
De todas elas escorreria.

Assim, 
Num dia distante
Os seus pés errantes
Caminharam sobre as águas.

Louco, andarilho, profeta, 
Descalço, onde terá chegado?
Que encontrem o que buscavam
Os seus olhos de afogado.

Às vezes lembro seus sapatos
E penso lavar os meus no mar
E vejo a terra segundo
Os olhos loucos de Miramar.




Gilberto Isquierdo: voz
Paulo Timm: voz
Silvério Barcellos: arranjo e violões
Hélio Mandeco: vocal e efeitos
Gil Soares: flauta
Negrinho Martins: baixo.


11. Perguntas ao que me olha do espelho

Letra: Maurício Raupp Martins - Martim César
Música: Paulo Timm

Quando um incêndio ardia em meus olhos
Eu não via tanta tristeza nesse lugar
Terá o mundo vestido um poncho enegrecido
Ou mudado o meu modo de olhar?

E o que dizer do sol que eu desejava
Se eu já nem noto seu brilho na janela entrar
Será a noite que desencilha mais cedo
Ou eu anoiteço antes do dia terminar?

Eu vi as cores que coloriam meus dias
Dia a dia, em cinza se transformando
Terão as cores perdido seus tons
Ou eu aos poucos fui desbotando?

Às vezes penso que a vida parou
Nos meus olhos, de repente,
Ou terá o meu olhar parado
Enquanto a vida seguia em frente?

Eu olho nos olhos do ser do espelho
E os reconheço, não sei de onde
Ele me olha e não me vê
E às minhas perguntas não responde. 

Eu olho nos olhos do ser do espelho
E me assusto com o que enxergo
Seus olhos, cansados de tanto ver,
Já não viram que estão cegos.




Arranjo coletivo
Paulo Timm: voz 
Silvério Barcellos: violões
Fernando Leitzke: piano
Leonardo Oxley: violino
Fabrício Moura: baixo.


12. Nas mãos do negro Olício

Letra: Maurício Raupp Martins
Música: Gilberto Isquierdo

Tinha canha no coração
Nas mãos
Uma faca de lâmina preta
E um sotreta agonizava no chão. 

Algema nos pulsos
Os pés numa vila
No olhar   o olhar dos cordeiros
Que lhe renderam fama
No tempo de esquila.

A faca de lâmina preta
Do crime da vila
Um dia já foi tesoura de esquila.
A faca de lâmina preta
Da marca Corneta
Nas mãos sem ofício do negro Olício.

O que o mundo fez daquela tesoura
Quando o que fora tosador a martelo
Perdeu o elo com sua querência.

O que o mundo faz do braço, do aço
Apartados de campo e ofício
Num estranho municio o destino se farta.

O que o mundo fez quando desfez
Olício e sua tesoura Corneta 
Com lâmina preta banhada de sangue.

Tinha canha no coração
No lugar do que já não tinha
No olhar  o olhar dos cordeiros
Duns campos de cacimbinhas.





Gilberto Isquierdo: voz
Éverson Maré: arranjo e violões 
Paulo Timm: vocal
Hélio Mandeco: vocal e bombo
Leonardo Oxley: vocal.



Apresentação

Disse, certa vez, Ray Charles: 'Eu nasci com a música dentro de mim. Ela me era tão necessária quanto a comida ou a água'. E é sobre uma necessidade igual a essa que escrevo. Sobre uma música ou um conjunto de músicas. Sobre essa singularidade presente em três amigos e irmãos de alma que fazem do poema e da melodia algo tão imprescindível como o sol de cada dia. Não que vivam da música, mas não vivem sem ela. Como aquela história de um tocador de arpa famoso em sua Macondo que ao cruzar por um lugar perigoso é assaltado e ferido e que - ao ser encontrado - quase inconsciente, diz: 'Me roubaram as mulas... me roubaram a arpa...' - depois completa sorrindo – 'mas não me roubaram a música!' Essa é a impressão que emana dessas canções melodiadas pelo Gilberto Isquierdo e pelo Paulo Timm, sobre poemas do Maurício Raupp.
Singularidades. Efeitos inebriantes retirados de uma canção que parece nascer da essência poética do vinho, ou de uma noite solitária vendo e percebendo o drama dos personagens de um 'boliche'. Ou de uma resistência irmanada à natureza no seu ciclo da semente, raiz e fruto para ser tudo em tudo, como um libelo,  gritando ao ser humano para que desperte da sua loucura cotidiana de destruir o seu bem mais precioso. Canções em que o olhar do artista da música e das imagens – e aqui escrevo Gilberto Isquierdo - consegue deixar timbrado o seu estilo único; como se ao musicar,  pintasse um quadro. Melodias em que fica mais uma vez comprovada a sonoridade inconfundível de um talento com quem tenho orgulho de compartir tempo e espaço; e aqui me refiro ao Paulo Timm. Poesias que não se apegam a dogmas e nem a temas comuns, e que alcançam as visagens de noites zitarroseanas ou dos versos 'a la Whitmann' que nos chegam feito cursos límpidos e puros de palavras singrando as terras do sul. Ou mais precisamente: as águas do sul. Nosso sul, Maurício Raupp. Singular,  por ser um caminho novo e – ao mesmo tempo – que segue no mesmo rumo dos que resistimos à arte que tem um preço. Pois há muito sabemos que a arte que tem valor está além dos modismos fugazes e comerciais que assolam o nosso dia-à-dia. Singular,  sim,  porque aqueles que seguem passos alheios não deixam rastros na estrada.